31 de julho de 2008

Só a noite é que amanhece

Eu nunca entendi a lógica do meu relógio biológico.

Minha relação com o sono e os horários sempre foi meio maluca, desde que eu era bem pequeno. Tinha uma dificuldade enorme para acordar de manhã e ir para a escola - parte disso influenciou o meu desempenho acadêmico risível até a faculdade. Acordar às 6 da manhã sempre foi um martírio para mim, qualquer que fosse a hora em que eu fosse dormir na noite anterior. Quando eu tinha 5 ou 6 anos de idade, meu hobby preferido era esperar meus pais irem dormir, sair do quarto silenciosamente, ir até a sala, ligar a televisão, e ficar assistindo filmes e seriados até o sol nascer.

Estou falando nisso porque ontem fui dormir às 2 da manhã e hoje acordei espontâneamente às 7. Sem dor de barriga, sem barulho no vizinho, nada do tipo. Eu apenas acordei e não consegui mais dormir.

Esse horário da manhã é muito esquisito. O sol está lá no alto, tudo está claro e iluminado, mas ainda está um pouco frio da noite. A rua não está barulhenta como vai estar ao meio-dia, e as pessoas que você vê na rua estão todas em um estado de consciência alterado, pensando em como a cama delas estava quentinha e como vai ser chato encarar mais uma manhã de trabalho e de aula. As pessoas que andam na rua nesse horário são sempre mais deprimentes do que as que voltam para casa às 5 da tarde.

Entre os 15 e os 17 anos de idade eu tive uma fase em que tinha que ir a pé até o colégio todo dia de manhã. Eu acordava por volta das 6 da madrugada, e descia o morro a pé com meu irmão e mais dois colegas que moravam ali perto. Era uma forma que tínhamos de nos incentivarmos uns aos outros para encarar mais uma manhã de martírio intelectual.

Às vezes aparecia o doidão corredor.

Era assim. Fazia um frio brutal, 6:30 da manhã, todo mundo passando mal de sono e de frio, enrolado com casacos e cachecóis e morrendo de ódio do universo por ter que acordar naquele horário para ir à aula, e de repente ouvíamos aquele barulho vindo pela rua. Passos. Passos rápidos e espaçados. Súbito, lá vinha ele: um metro e oitenta, pele cor-de-rosa, óculos de aro fino, cabelo volumoso cheio de fios brancos, cerca de 45 anos de idade, barbudo, sem camisa, com um short Adidas bem curto e tênis. E um relógio enorme no pulso, que certamente media seus batimentos cardíacos. Ele passava correndo no meio da rua, ofegante, triunfante, dono do asfalto, se achando muito esperto.

Talvez ele até fosse um cara legal, bom pai, patrão bondoso, etc. Mas eu tinha um tipo estranho e específico de ódio por esse cara.

Mas não era bem disso que eu queria falar.

É que eu acho engraçado como as horas do dia têm personalidade, assim como os dias da semana. Da mesma forma que as segundas são uma droga, as quintas são mais divertidas do que as sextas, e os domingos são deprimentes e entediantes, também as horas do dia têm duas características.

Independente da hora em que eu acordei, meu dia sempre começa por volta das onze da manhã, uma das horas favoritas dos trabalhadores de todo o mundo. Até as 10:59 ainda estamos presos no "time slot" na manhã: reuniões, aulas, conversas com o chefe, levar esporro de cliente, etc. A partir das 11:00 já chegamos na zona de conforto do almoço.

Chega então o meio-dia, o horário de almoço oficial de 99,99999% dos ratinhos de laboratório do mundo. Correndo em suas rodinhas de arame, eles invadem os self-selfs do mundo inteiro com suas pastas, bolsas, sacolas, mochilas, e um transbordante sentimento de "pressa responsável", como se pudessem justificar sua existência no mundo com a grosseria com que exigem a rapidez no atendimento; como se o fato de comerem meio quilo de comida em apenas cinco minutos fosse um símbolo de status. Eu, que não sou louco, jamais almoço ao meio-dia, pelo mesmo motivo porque eu não pego trânsito às 6 da tarde e não viajo no dia 23 de Dezembro à noite. Espero calmamente até as 13:30 para só então descer até a rua e escolher calmamente em qual das diversas cadeiras vagas do restaurante eu vou querer me sentar.

Depois do almoço vem a tarde. As 4 da tarde são um horário importante para quem precisa ir ao banco. Mas é às 3 da tarde que as coisas acontecem. 17:00 já não é uma hora muito bacana - está se aproximando o fim do expediente, o sol está indo embora, e logo logo vamos estar encarando um trânsito infernal, enquanto a luz e o calor do sol vão embora e o ar começa a ficar mais frio.

Esse horário do pôr-do-sol é o mais deprimente de todos. É quase que uma granada de domingo que explode todos os dias da semana. Deve ser alguma coisa no meu DNA, que fica deprimido toda vez que vê o sol indo embora. Conscientemente, eu fico feliz, porque odeio luz na cara, calor e coisas do tipo. E, mesmo assim, o pôr-do-sol sempre me deixa melancólico.

Chega então o polêmico horário das 19:00. Sete da tarde ou sete da noite? Isso divide o mundo em dois, assim como a cebola, a Sofia Copolla e os argentinos.

Por volta das 20:00 eu fico mais tranqüilo. Semanticamente seguro. Agora é noite mesmo, com certeza. Horário de verão ou não, às 20:00 já está escuro. O céu está cheio de estrelinhas, e chega a hora do jantar, que é a minha refeição favorita do dia. Não sei por que mistérios o jantar é sempre melhor do que o almoço, independente do cardápio. A não ser que seja dia de sopa.

Chegam então as 22:00 (estou pulando algumas horas de propósito - detesto horas ímpares) que sempre foi um horário tabu na minha infância. Para acordar às 06:00 eu tinha de estar dormindo às 22:00, e ver o relógio mostrar qualquer minuto além disso era sinal de tragédia. Hoje em dia tento lutar contra esse trauma - 22:00 é o horário em que eu começo a pensar em trocar de roupa para ir à academia, ou para sair com os amigos.

A meia-noite é um horário decisivo. A partir daqui, nenhum trabalhador digno e honesto, temente a Deus, está acordado. A não ser que esteja de pijama, deitado no sofá, vendo o Programa do Jô. É aqui que se separam os homens dos meninos, os seres humanos dos vampiros e lobisomens.

Surge então a madrugada - 01:00 é uma ótima hora para comer, principalmente se você jantou por volta das 21:00 ou 22:00. O difícil é achar um lugar bom e barato aberto, ou então vencer a preguiça e encarar o fogão enquanto todo o resto do mundo (no seu fuso horário) está dormindo.

Passam as 2, as 4, e finalmente vem chegando o limite da madruga, que são as cinco horas da matina. Nesse horário alguns malucos já estão acordando, o padeiro já está lavando as mãos, e os malditos passarinhos já começaram a cantar. É um péssimo horário para tentar dormir, especialmente se você está na rua bêbado igual a um gambá e fedendo a cigarro. É também o horário perfeito para conhecer a mulher da sua vida que vai ser mãe dos seus filhos.

Por volta das 6 já começou a palhaçada, e a romântica e poética madrugada tornou-se agora o vulgar e desprezível horário proletário. Os ônibus já trafegam em plena velocidade, poluindo o ar e os ouvidos de toda uma civilização. Vigias e porteiros trocam de turno, padarias começam a vender pão de bromato quentinho, e a televisão começa a falar abobrinhas, com "notícias" de Brasília e a cotação do dólar.

Mas meu estômago é fraco demais para testemunhar tudo isso. Quando chega essa hora, quero estar dormindo, para deixar bem claro que eu não tenho nada a ver com isso.

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