23 de fevereiro de 2008

Na areia branca do deserto escaldante...


Subitamente, quando olhei à minha volta, me vi cercado por ex-pessoas. Meu passado inteiro ali, lotando o lugar, e eu não tinha nem uma porta para escapar. Era passado por todo lado, um em cada braço, um na frente, e atrás de mim só uma parede de concreto. E atrás dos passados, outros passados acenavam de longe.

Ex-amigos, ex-inimigos, ex-namoradas, ex-ficantes, ex-it´s-complicateds, ex-colegas de trabalho, ex-alunos, ex-professores, ex-companheiros de banda, ex-calouros, ex-veteranos, ex-mulheres, ex-homens, ex-compadres, ex-parceiros, ex-futuros.

E quem sou eu no meio de tanto fim? Um ex-jovem, ex-magro, ex-cabeludo, ex-bonito, ex-alegre, ex-feliz, ex-a alma da festa, ex-exemplo, ex-ídolo, ex-amigo, ex-professor, ex-namorado, ex-paixão da vida de alguém, ex-sysop, ex-mentor, ex-orientando, ex-aluno, ex-filho, ex-marido, ex-atleta, ex-campeão de xadrez, ex-leitor, ex-gourmet, ex-virgem, ex-sóbrio, ex-coerente, ex-blogueiro? De quantas coisas mais eu vou ter que me livrar antes de ser?

Eu me sinto como um dromedário perdido no deserto, carregando nas costas essa enorme corcova de vidas passadas. Verdades e mentiras, conclusões e reticências, coisas que foram bem explicadas e coisas que ficaram pela metade. Algumas recordações boas, muitas ruins, imagens e sensações que voltam por vontade própria, e saudades tão específicas que não fariam sentido para absolutamente ninguém nesse mundo. Vagando pela areia escaldante em minhas quatro patas peludas e feridas, vou vagando de oásis em oásis, buscando água e comida. Mas tudo que encontro são miragens. Uma após a outra, sumindo no horizonte, dando falsas esperanças a quem tem cada vez menos discernimento da própria insolação.

Nenhum tuareg vai vir me resgatar. Preciso sair daqui sozinho. Sem mapa, sem bússola, sem a ajuda de Alá, flanando de miragem em miragem, até chegar a Meca, Túnis, Cartum, Casablanca, Algiers, Bamako, Cairo, Tobruk, Trípoli - qualquer lugar serve, desde que tenha água. Um copo não basta: quero um rio profundo, um oceano em que eu possa mergulhar 108 quilos de Camelus dromedarius e deixar essa corcova gigantesca se dissolver, e então afundar, até onde for possível; deixar de ser um dromedário e virar um cavalo marinho, um tubarão, algum animal silencioso que passe a vida no fundo do mar, existindo e deixando existir.

Uma arraia. Era isso que eu queria ser. Se eu fosse um animal, Lívia, Elisa, Júlia, e demais psicólogas com 5 letras terminadas em A, eu seria uma arraia, muito grande e negra, deslizando silenciosamente pelo oceano, sem olhos, sem patas, sem nada, só uma grande mancha negra e escorregadia, com uma cauda enorme e um ferrão afiadíssimo e cheio de veneno que eu nunca jamais usaria contra ninguém - só o teria porque a natureza é assim mesmo, ela nos dá armas mortais que podemos escolher usar ou não.

No fundo do mar não existe passado. Os peixes, abençoados por Netuno, têm a memória curtíssima - cerca de 4 segundos, no máximo. Não se lembram de quem são, de onde vieram, quem foram seus pais, sua infância, o que viram na TV - nada. Apenas nadam, observam, comem, brincam nas folhas, descansam sem dormir. Sem corcovas.

Eu faço o que eu posso. Tento ignorar o passado, viver o presente. Mas o meu presente é um enorme passado que não vai embora nunca. Eu corro, eu fujo, eu me escondo, eu tento ficar invisível, me enfiar debaixo do tapete, desligar o celular e fechar o MSN, mas não tem jeito. O passado bate à minha porta, liga no fixo, manda e-mail, scrap, testimonial, Facebook, Twitter, e qualquer outra merda de tecnologia que ainda nem inventaram - não importa o que seja, o passado vai usar para me procurar. E, quanto encontrar, ele vai esfregar na minha cara todos os meus fracassos, as minhas derrotas, as minhas ilusões ridículas que viraram motivo de chacota, as minhas paranóias, neuroses e outras escrotices em alemão que eu não sei qual é qual - e mesmo que eu fosse cego, esse passado viria em alto e bom som, até eu ficar surdo, e então ele viria com o dobro da força, mas agora em braile, e também na forma de um cheiro onipresente que iria me lembrar as coisas mais absurdas. O cheiro daquela menina que vocês não conheceram, daquele lugar onde só eu fui, daquela comida que ela fez uma vez pra mim, e o cheiro do cabelo da Mariana no dia em que ela cortou ele curtinho. Mariana? Vocês nem conheceram a Mariana.

Mas... vocês quem? As vozes na minha cabeça? O sol do deserto está finalmente fritando os meus miolos.

Miolos. Até na hora do suicídio imaginário eu penso em zumbis. Que final ridículo. E perfeito.

7 comentários:

Julia Mesquita disse...

hmm, uma arraia... [dedos intercruzados e sobre a boca]

muito fálico isso hein?!

Biti Averbach disse...

muito bom esse texto!!!!!!!!
pq vc não faz um filme com ele?

Biti Averbach disse...

ah: tem um texto incrível do Camus chamado "A mulher infiel" ou adúltera, não lembro, q acho q vc iria gostar

Anônimo disse...

acho que J não sabe como é uma arraia... rsrsrs não é nada fálica, muito pelo contrário rsrrs

Anônimo disse...

clap, clap, clap.
Biti me deu a dica, por MSN, vim aqui ler e também ficar embasbacado, como ela disse ter ficado.

Caramba! ... que texto.

Julia Mesquita disse...

NOSSA!

não tinha visto que esse anônimo tinha me tirado!

e tipos
http://www.frigoletto.com.br/GeoAlagoas/Peixes/arraia.jpg

se ele não consegue ver nada de fálico nesse chicote, ou é muito recalcado [na acepção carioca do termo], ou muito pouco criativo!

Anônimo disse...

pois, meu caro J., vou te tirar de novo: se vc chama de fálico aquele ferrão fininho e comprido, tadinho docê, heim! rsrsrss

aquilo é mais coisa de dominatrix, pra batê em gente inrustida, do que algo propriamente viril!