Meu ego acredita que vocês, meus pacientes e simpáticos, estão muito preocupados com o meu sumiço, e com o desapego que parece ter me afastado de cometer essas mal-traçadas. Os motivos do sumiço são vários, mas um dos principais é o meu atual estado de nomadismo, tentando me mudar da casa dos meus pais para um novo apartamento que estou tentando alugar. Mas isso é assunto para outro post.
O momento atual é de organizar as coisas para a mudança. Não tenho pressa, mas sinto que quanto antes eu começar, mais cedo terei a sensação - até hoje inédita em minh'alma - de ter um lugar para chamar de meu. No processo de preparação, não dediquei nenhum tempo às roupas, meros panos que uso para cobrir minhas vergonhas. Tenho me concentrado, principalmente, no mais volumoso, pesado e complexo fardo que um homem em mudança precisa carregar: sua coleção de livros.
O processo longo e extenuante está se desenrolando aos poucos. A casa de meus pais, que quase nenhum de vocês conhece, é um amontoado indescritível de coisas. Pilhas e mais pilhas de livros, revistas e papéis aleatórios empilhados sobre móveis antigos, computadores quebrados, e outras curiosidades. Motivo de vergonha especialmente para minha zelosa mãe, essas pilhas de coisas sempre foram minha grande diversão de infância. Mas confesso que nos últimos anos a brincadeira tomou proporções perigosas.
Assim, encontrar meus livros e revistas no meio dessa confusão tem sido um trabalho digno de Indiana Jones, unindo a necessidade de habilidades detetivescas à-lá Sherlock Holmes com a destreza e coragem físicas de um James Bond. Comecei hoje por um singelo armário de livros que fica atrás da porta do quarto dos meus pais, na intenção de que os buracos deixados pelos meus livros os dê alguma esperança de, no futuro próximo, viver em uma casa menos estranha.
Como podem imaginar, os livros dessa casa não estão organizados em ordem nenhuma. Nem cronológica de edição, nem alfabética por título, muito menos por sobrenome de autor. Estão em uma forma de organização que eu apelidei de "cronológica por existência". À medida em que os livros foram chegando no espaço da casa, foram sendo colocados no lugar mais conveniente naquele momento, e assim o caos que governa o universo também delimitou as regras de organização dessa misteriosa biblioteca.
Embrenhei-me entre a porta e o armário, tal qual detetive lovecraftiano, soprando a poeira dos volumes como se estivesse no mais sombrio recôndito das bibliotecas de Arkham ou da Miskatonic University. Fui então presquisando, lombada por lombada, quais eram os meus.
Logo começou um problema. Em uma casa onde todos são compadores e leitores de livros, qual livro é de quem? Seria injusto me limitar aos livros que eu mesmo comprei ou que ganhei de presente. Ao mesmo tempo em que encontrei diversos livros que não se encaixavam nessa categoria, mas haviam mudado a minha vida, haviam também livros que eu havia comprado mas nunca havia lido, mas que tinham sido adotados por outros membros da minha família. Assim procurei usar critérios mais subjetivos e complexos, o oposto da burocracia.
Pouco a pouco os tomos foram se avolumando em meus braços. Encontrei de tudo: "O Guia do Mochileiro das Galáxias", "Ellery Queen Mistério Magazine", um livro do William Shatner sobre os filmes de Star Trek, koans zen-budistas, física especulativa, e outros acepipes literários. Esses eu sabia que eram meus, embora a falta de dedicatórias me deixasse sem saber quem me deu qual, quando, em que ocasião.
O problema começou mesmo quando me deparei com outros títulos. "Uma breve história no tempo", de Stephen Hawkins, primeira edição brasileira. Não é um livro que eu leia todo dia, mas sempre gostei de saber que ele estava por perto. Cada crente tem a sua bíblia, e muito do que eu penso sobre quem sou eu, de onde vim e para onde vou estão nesse livro, e não em algum romance do Paulo Coelho. O livro não tem nome nas páginas iniciais, mas eu tenho certeza que não fui eu quem comprei. O que fazer? O mesmo aconteceu com "A Idade da Razão", de Sartre. Eu nem terminei de ler, e por isso preciso levá-lo comigo. Nunca se sabe quando vai-se poder tirar uns dias de férias e terminar um romance dessa envergadura.
"O Sol Também Se Levanta", de Ernest Hemingway, também é um clássico que eu não sei de onde veio. Não me lembro de momento algum em que algum de meus familiares tenha feito referência a esse livro, ou mesmo a Hemingway em geral. No entanto, o livro não é meu. Teria eu mais direito sobre ele do que o dono anônimo? Por algum motivo misterioso que me escapa, a história de um bando de gente que fica bebendo o dia inteiro me traz um calor no coração. Acho que vou levá-lo.
Curiosamente, a última e mais empoeirada das estantes continha os livros mais importantes para a minha afetividade intelectual: uma edição completa de "O Senhor dos Anéis", presente de uma amiga muito querida; "Mate-me Por Favor", uma espécie de "Como Fazer Amigos E Influenciar Pessoas" da geração pós-Vietnã; os 12 primeiros volumes d0 "Lobo Solitário" de Koike e Kojima; e finalmente, o mais inútil, estragado e querido volume que já entrou nessa casa: o Guia de Video 1993, meu fiel companheiro de aventuras em uma era pré-DVD e pré-pré-pré-IMDB.
O jeito é deixar os livros todos expostos para inspeção, e deixar que meu pai, minha mãe e meu irmão dêem o veredito sobre quais livros eu posso ou não posso levar. Vai que algum deles é obcecado com Hemingway e me aparece com a nota fiscal do livro?
Ironicamente, depois de mover todos os livros e dispô-los em pilhas no meu quarto, que ficou por cima de todos foi uma das maiores odes de amor aos livros: "Fahrenheit 451", de Ray Bradbury. Já vi muita gente dizer que esse livro é um protesto contra a censura e contra a queima de livros promovida por nazistas e outros grupos políticos. Mas, até onde eu sei, o que o autor queria era dizer que a televisão destrói o interesse das pessoas em ler literatura, e que isso leva à ignorância dos fatos. Hoje, 55 anos depois da publicação do livro, parece que estamos caminhando para algo muito próximo do que ele previu.
Mas vão ter de me matar várias vezes antes de queimarem meus livros.