11 de abril de 2008

Tragédia x Comédia

Ontem na aula meu professor estava falando sobre tragédia grega, estrutura do teatro grego, "A Poética" de Aristóteles e outros temas profundamente relevantes, o que me levou a fazer várias anotações que gostaria de compartilhar com os meus nobres leitores.

O livro perdido de Aristóteles

"A Poética" é um dos livros mais importantes do mundo: é o resultado de uma extensa pesquisa que o filósofo grego Aristóteles compilou baseado na estrutura narrativa das tragédias gregas de maior sucesso de público e crítica. No entanto, esse volume só trata das tragédias, e ele teria escrito um segundo livro somente sobre as comédias. Como os fãs de "O Nome da Rosa" sabem muito bem, esse livro nunca foi encontrado, e a nós, meros mortais que habitamos a sombra do grande filósofo, podemos apenas tentar imaginar seu conteúdo. Assim, dentro das "regras" que ele estabelece para a tragédia, comecei a fazer um exercício de imaginar como seriam as da comédia, invertendo tudo que ele estabelece na tragédia e comparando com exemplos da vida real.

Vamos começar pelo protagonista. O "protos agonia" da tragédia, o "agoniado primordial", é quase sempre uma pessoa poderosa, acima dos meros mortais - um rei, uma princesa, algo assim. Não porque isso seja mais chic e a vida deles seja mais interessante, mas porque pessoas em cargos de poder não podem fazer tudo o que querem (exceto, obviamente, no Brasil). O protagonista da tragédia não tem direito ao livre-arbítrio: o destino de muitas pessoas depende dele, e é por isso que se matam algumas poucas pessoas para salvar milhares. É o caso de Hamlet, que ao invés de abandonar a Dinamarca à própria sorte decide ficar e enfrentar a mãe, o que resulta na morte de Ofélia e na sua própria. É o caso também de Agamênon, que sacrifica sua filha Ifigênia à deusa Artêmis para que a Grécia possa triunfar na guerra contra Tróia. É o caso do Surfista Prateado, punido com sua prisão na Terra por ter ousado desafiar o destino imposto pelo "deus" Galactus.

Na comédia, o protagonista quase sempre é o oposto de tudo isso: ele é pobre, e livre. Não tem poder nenhum, mas pode decidir o futuro de sua vida. Por isso, quase sempre as aventuras dos protagonistas das comédias são provocadas por coisas que eles mesmos causaram, ao contrário das tragédias, onde a vítima do destino é quase sempre inocente. Os comediantes vagabundos são os mais clássicos: será que Os Três Patetas, os Irmãos Marx e os Trapalhões teriam graça se fossem ricos e poderosos? O exemplo máximo disso deve ser o Vagabundo de Charles Chaplin, um mendigo sem casa e sem família que anda por onde quer fazendo o que quer, sempre em busca de um pouco de comida e de carinho. Ele não tem filhas para sacrificar, não tem poder para corromper, nem exércitos para liderar - suas trapalhadas são conseqüência de seus próprios atos, e a resolução de seus problemas também.

O que me deixou encucado foi pensar nos outros elementos da tragédia que, se invertidos, podem se tornar coisas muito perigosas. Por exemplo: a tragédia é uma história onde experimentamos o terror, que posteriormente provocará a nossa piedade. O personagem sofre, não pode fazer nada, e nós ficamos com pena dele. Qual seria o oposto disso na comédia? Qual é o oposto do terror? Seria o humor? Aí depende do motivo porque rimos. A gargalhada pode ser libertadora e trazer alívio, mas não deve ser um instrumento do escárnio e da chacota. Se o terror da tragédia traz a piedade, o riso da comédia não pode trazer o oposto.

Outro tema importante das tragédias é a purificação. O espectador sai da peça/filme/livro com uma sensação de purificação da alma. Depois de ver as tragédias que acometem os poderosos, a extrema piedade que nos invade ao presenciar o destino cruel dos protagonistas nos torna mais humanos, e nos reforça a sensação de que somos muito pequenos se comparados à imensidão do universo; nossos problemas domésticos que parecem tragédias ("estou gorda", "meu marido me traiu", "meu chefe é um idiota", etc.) se revelam meros aborrecimentos quando comparados à dimensão trágica do destino dos ricos e poderosos.

Qual seria o posto disso tudo? Se a comédia for uma inversão dos valores da tragédia, ela poderia transformar os espectadores em monstros que não ligam para nada, que não respeitam os sentimentos do alheio, só se preocupando com o seu próprio ego.

Talvez exista sim uma "má comédia", que ao invés de purificar o espectador acaba por torná-lo mais "sujo". O poder de uma risada é muito forte: se você consegue fazer uma pessoa rir de uma coisa, ela perde o respeito por ela facilmente. Não é à toa que sempre existiram tantos comediantes políticos - desde os bobos-da-côrte medievais até os cartunistas do século XVIII e até o John Edwards.

Aqui eu começo a ficar confuso e me pergunto se existem dois tipos de comédia. Ou melhor: talvez existam duas coisas que chamamos de comédia, mas uma delas é a comédia "de verdade" enquanto a outra é apenas uma "anti-tragédia". Basta comparar um filme como "Luzes da Cidade" a qualquer comédia hollywoodiana pós-11-de-Setembro como "Vovó Zona" ou "Todo Mundo em Pânico 3". Chaplin consegue, em suas histórias, provocar o riso típico da comédia e preservar os valores e a "utilidade" da tragédia em uma mesma história. Seu protagonista não é poderoso, não é vítima do destino nem dos deuses, e sua vida cheia de livre-arbítrio provoca muitas gargalhadas ao invés do terror - mas mesmo assim ele consegue a nossa piedade, e terminamos a história com a sensação de purificação.



Os super-heróis como novos mitos e tragédias

Outra coisa que me deixou curioso na aula foi quando o professor falou no Batman, citando-o como exemplo de protagonista trágico. Na hora eu não quis falar nada para não ser o chatão da aula, e eu ia fugir do assunto que ele estava tentando abordar, mas eu discordo que o Batman seja um exemplo de tragédia grega.

Bruce Wayne é um milionário dono de uma mega-corporação. Isso poderia fazer dele um candidato a protagonista trágico - no entanto, sua vida é um poço de livre-arbítrio: depois do assassinato de seus pais quando ele era criança (até aqui uma tragédia clássica - a criança vê seus pais serem mortos injustamente e não pode fazer nada para impedir o destino) ele decide dedicar o resto de sua vida a combater o crime para tentar aplacar seu ódio. Mas ele faz isso por vontade própria, e não foi punido por essa decisão.

No entanto, existem outros aspectos da tragédia grega que podem ser aplicados ao Batman. Ele é cheio de contradições - não se sabe direito se ele é um herói ou um psicopata, se ele acredita na justiça ou na vingança. Seu livre-arbítrio também traz algumas desgraças, como a morte do Robin original ou a paralisia de Barbara Gordon. Mas, no geral, ele é apenas um "herói" que combate o crime. O poder que ele exerce, o de ser um milionário dono de uma mega-corporação, raramente entra nas tramas da história. Eu nunca vi o Bruce Wayne ter que se sacrificar para evitar uma demissão em massa, por exemplo. A empresa, seu verdadeiro reino, dificilmente aparece como personagem nas tramas.

Quem seria, então, um super-herói trágico grego clássico? O Super-Homem vem logo à mente: super-poderoso, quase um semi-deus, abandonado em um planeta que não é o seu, sempre com esse sentimento de deslocamento. No entanto, ele foi criado como um terráqueo, e possui uma afeição pela nossa espécie. A principal diferença entre ele e o Batman, que poderia torná-lo um candidato a protagonista trágico, é que ele se preocupa com o bem estar de toda a Humanidade. Ele é mais um justiceiro do que um vingador, e age sempre pensando no bem-estar do próximo. No entanto, quais são as grandes tragédias da vida do Super-Homem? Ele não poder transar com a Lois Lane? Isso é pouco.

A mini-série "Kingdom Come" (escrita por Mark Waid, baseado em um conceito de Alex Ross) explora alguns aspectos da personalidade desses dois heróis dentro de um conceito mais próximo à tradição da tragédia grega: o Super-Homem abandonou seu posto de defensor de Metrópolis e da Terra (livre-arbítrio) e isso provocou uma escalada na violência dos vigilantes super-poderosos que o seguiram, culminando com uma grande explosão nuclear no Kansas. Então ele decide voltar para tentar evitar o fim do mundo.

Outra personagem interessante nessa história é a Mulher Maravilha, que foi expulsa da sociedade das amazonas por ter falhado em sua missão. Assim ela toma para si a responsabilidade de salvar o mundo, liderando os super-heróis contra os vigilantes descontrolados. Mesmo assim, tudo escapa um pouco da tragédia grega, ficando mais do lado dos heróis gregos que usam seus poderes sobre-naturais e soluções criativas para problemas práticos.



Talvez algum herói da Marvel se aproxime mais da tragédia grega do que os da DC: o Surfista Prateado que eu citei anteriormente é um exemplo mais trágico do que heróico. Ele deve ser o único super-herói maníaco-depressivo dos quadrinhos: em suas histórias clássicas, ele está sempre sofrendo, deprimido, angustiado. Sua origem explica bem isso: para evitar que seu planeta natal, Zenn-La, fosse consumido pelo temível Galactus, o astrônomo Norrin Radd fez um acordo e tornou-se o arauto de Galactus, surfando pelo espaço e encontrando novos planetas para serem devorados.

Quando o Surfista Prateado chega à Terra, ele avisa a Galactus que encontrou um planeta nutritivo e apetitoso, mas encontra a resistência do Quarteto Fantástico. Eles lutam, mas os poderes do Surfista são grandes demais para o Quarteto. No entanto, ele cai na armadilha do protagonista e comete uma falha trágica: Sue Richards, a Mulher Invisível, o convence de que dizimar bilhões de vidas seria um erro, e o Surfista decide então voltar-se contra Galactus.

Na verdade, aqui ele comete duas falhas trágicas: a primeira, a de tomar consciência da responsabilidade que seus poderes poderiam ocasionar. A segunda, a de voltar-se não somente contra seu mestre, mas contra um verdadeiro deus: Galactus não é apenas um patrão exigente, mas uma criatura de poder inimaginável, acima do bem e do mal.

Em um ataque de livre-arbítrio, o Surfista decide lutar contra Galactus e tentar impedi-lo de comer a Terra. Surge então um deus ex machina, uma arma terrível chamada Nulificador Total, trazida de uma dimensão paralela pelo Vigia e pelo Tocha Humana. Galactus decide então abandonar a Terra, mas não sem antes punir seu ex-arauto pela ousadia: cria em volta da Terra um campo de força especial que só impede o Surfista Prateado de passar. Assim ele ficará para sempre exilado em um planeta alienígena, com sua nova consciência pensando fixamente no planeta natal e em sua amada Shalla Bal.

Ainda tem o Watchmen... mas acho que chega por hoje, né?

4 comentários:

Anônimo disse...

O post tá tão bom que eu fico até com vergonha de perguntar:

E 'meu vizinho Totoro'? Também terminei de ver com a alma purificada. É uma tragédia, então?

Biti Averbach disse...

hum... bem legal esse post. estou aqui pensando um monte de coisas...
o riso me parece uma coisa bem mais complexa do que o terror.

ambos tem um denominador comum é a compaixão.

o humor nos atinge, em geral, pela identificação: rimos da piada da loira pq nos reconhecemos ali, assim como reconhecemos nossos preconceitos.

vou ter que estudar o caso...para poder aprofundar mais

Anônimo disse...

Hum, eu que nem entendo nada de HQ até que achei fácil identificar estes conceitos de tragédia aos heróis.
Aliás, heróis vai sempre ser palavra que remete à tragédia, e eu ainda nem tinha pensado nisso...
Boa mesmo a leitura.

Visitarei mais vezes ;)

Anônimo disse...

A comédia pode criticar a política por exemplo e isso lembraria as pessoas dessas questões , ela pode criticar padrões , conceitos errados , culturas abomináveis que ainda existem , dogmas milenários não racionais , comportamentos inadequados ...